NATUREZA FEMININA E CRISE AMBIENTAL

A falta feminina em cada um de nós como sinal da Terra perdida em todos

- Para uma abordagem Eco-Existencial Integrativa

Em pleno Antropoceno, vemo-nos face à emergência de uma actuação colectiva que represente um pensamento alternativo ao dominante/ dominador, que seja mais focado na criação da vida, no poder da transformação do velho em novo, e respeitador dos movimentos naturais inerentes a todos os momentos e fases da vida. A activista social Riane Eisler chamou-lhe “Transformação Cultural”. Os biólogos Francisco Varela e Humberto Maturana chamaram-lhe “Autopoíesis”, como processo pessoal de criação de si mesmo, reparação, cuidado na sua manutenção, e autotransformação. Também a neurocientista Nazareth Castellanos confirma nas suas investigações sobre o chamado “6º e 7º sentidos”, respectivamente a “interiocepção” e a “propriocepção”, o papel central do diálogo “interior e exterior”. Reflexo primário da necessidade do colectivo e individual poderem dar as mãos, tornando-se complementares, parceiros que precisam ser vistos, e redescobertos. E este é mais um inicio de caminho.

Na procura de novas soluções para a crise ambiental do Antropoceno, temos vindo a desenvolver uma abordagem ecopsicológica que denominamos Eco-Existencial Integrativa, passível de ser aplicada directamente ao tratamento psicoterapêutico de indivíduos e de comunidades, com possíveis implicações ao nível da organização de outros rumos para o mundo. É uma abordagem que parte de uma atitude positiva e buscadora de esperança no ser-humano e nas suas potencialidades mais sublimes, misteriosas, e regenerativas. Onde ninguém é uma “coisa” e sim um radicalmente Outro Ser “sendo”, outra Existência, onde a responsabilidade se dá como único caminho para a real liberdade, num mundo relacional muito “mais-que-humano”.

A investigação arqueológica de Riane Eisler fala-nos da progressiva supressão do “cálice sacramental” nas culturas do Neolítico final, brutalmente invadidas pelo poder da “espada”; a análise psicanalítica de Emma Jung fala-nos da carência do complemento arquetípico Anima-Animus. Nelas apoiamo-nos para definimos o que entendemos por Natureza Feminina. É esta Natureza feminina que nos fala da nossa capacidade de ligação, relação, compaixão, criação, fantasia e imaginação, transformação, e amor à Natureza produtiva, em oposição à Natureza destrutiva dos sistemas culturais “androcráticos”.

No caminho para uma Natureza Humana integrada e equilibrada, vamos precisar reconhecer acima de tudo o seu valor dualístico: feminino e masculino, que a fisiologia do desenvolvimento neuronal corrobora nas mais recentes descobertas feitas pela neurocientista Lisa Masconi, acerca da especificidade do cérebro das mulheres, destacando-se ao mesmo tempo do dualismo cartesiano e contribuindo para a lógica não-dual do desenvolvimento humano. Do mesmo modo, vemos as dimensões conscientes e não-conscientes/ inconscientes, ou antepredicativas, mas também os seus reflexos individuais e colectivos, pessoais e arquetípicos ou simbólicos primitivos.

É neste caminho para a integração que nos vemos na busca das essências fenomenológicas, do que é o invariante da experiência de se ser Natureza Feminina. Percebemos a falta dela em cada um de nós através do nosso reflexo que vemos espelhado na Terra desmatada, amputada, extorquida, roubada, abusada/ explorada, nos rios poluídos, nos animais desalojados e em extinção, no ar irrespirável das cidades e orlas das suas indústrias. Esta experiência de “falta” pode ser sentida como carência, ferida, ou dor, emocional ou moral, e até física, através da doença, sendo precisamente esta “falta” que nos sinaliza que nos perdemos não só uns dos outros, como de uma ligação vital à Terra.

Nesta busca saudosista pelo tempo cooperativo onde a divindade era feminina e multifacetada, e os templos eram bosques, fontes, pedras, e grutas, percebemos o reflexo da falta da Natureza Feminina humana espelhado na Era do Antropoceno, que por sua vez está a originar aquela que Stephen J. Pyne denominou por Era do Fogo (Piroceno): momento da história da humanidade pautado pela já descontrolada atitude bélica, que procura exclusivamente no fogo e na destruição o motor para as suas acções, alimentadas massivamente pela extração de combustíveis fósseis, e pelo abuso de poder pautado por sistemas sociais rígidos e hierárquicos que seguem a lógica predatória primitiva do dominador sobre o dominado, e do superior sobre o inferior.

Voltar a controlar o fogo, conter a ganância, inverter a escalada consumista e produtora de lixo indestrutível, alterar os efeitos estufa e as alterações climáticas, descarbonizar a economia, parar a desflorestação e as extinções de biodiversidade, e proteger as nossas águas. Eis alguns dos propósitos da nossa busca pela Natureza Feminina, pois ela contém uma chave de saída desta crise ambiental, que é acima de tudo uma crise Eco-Existencial humana de desintegração. Vemos assim que só uma adequada integração dos opostos poderá conduzir-nos a uma viragem rumo ao complemento e á transformação da realidade actual.

Assente na investigação psicoterapêutica e transdisciplinar, assim como na nossa prática clínica com pacientes do projecto Alma Gaia ao longo dos últimos 9 anos, esta foi uma nossa proposta de alguns dos fundamentos para um modelo Psicoterapeutico Eco-Existencial Integrativo, passível de ser aplicado a indivíduos, famílias, e comunidades, apresentado no 9º Congresso Internacional de Ecopsicologia, em Setembro de 2023 na Sardegna/ Itália, por Cláudia D. Rodrigues. 

____________________________________________________________________________________________

English

____________________________________________________________________________________________

FEMININE NATURE AND ENVIRONMENTAL CRISIS:

The Feminine lack in each of us as a sign of Earth lost for all

– Towards an Integrative Eco-Existential Perspective –

In the middle of the Anthropocene, we are faced with the emergence of a collective action that represents an alternative thought to the dominant/dominator, that is more focused on the creation of life, on the power of transforming the old into new, and respectful of the natural movements inherent in all moments and phases of life. Social activist Riane Eisler called it “Cultural Transformation”. Biologists Francisco Varela and Humberto Maturana called it “Autopoíesis”, as a personal process of creating oneself, repairing, caring for its maintenance, and self-transformation. The neuroscientist Nazareth Castellanos also confirms this in her investigations on the so-called “6th and 7th senses”, respectively “interioception” and “proprioception”, the role of the dialogue between interior and exterior. Primary reflection of the collective and individual need to be able to join hands, becoming complementary, partners that need to be seen and rediscovered. Here is our proposal to start the journey.

In the search for new solutions to the Anthropocene environmental crisis, we have been developing an Ecopsychological approach that we call Integrative Eco-Existential, which can be applied directly to the psychotherapeutic treatment of individuals and communities, with possible implications at the level of the organization of nations and other directions for the world. It is an approach that starts from a positive attitude that seeks hope in human beings and in their most sublime, mysterious, and regenerative potential. Where nobody is

a “thing” but a radically Other being “being”, another Existence, where responsibility is given as the only way to real freedom, in a very “more-than-human” relational world.

Riane Eisler's archaeological research tells us about the progressive suppression of the “sacramental chalice” in late Neolithic cultures, brutally invaded by the power of the “sword”; Emma Jung's psychoanalytic analysis tells us about the lack of the archetypal complement Anima-Animus. We rely on them to define what we understand by Feminine Nature. It is this feminine Nature that speaks to us of our capacity for connection, relationship, compassion, creation, fantasy and imagination, transformation, and love for productive Nature, as opposed to the destructive Nature of “androcratic” cultural systems.

On the way to an integrated and balanced Human Nature, we will need to recognize above all its dualistic value: feminine and masculine, which the physiology of neuronal development corroborates in the most recent discoveries made by neuroscientist Lisa Masconi. As well as its conscious and non-conscious/unconscious, or antepredicative dimensions, but also its individual and collective, personal and archetypal or primitive symbolic reflections. And it is on this path to integration that we find ourselves in search of phenomenological essences, of what is the invariant of the experience of being Feminine Nature. We perceive the lack of it in each one of us through our reflection that we see mirrored in the Earth deforested, amputated, extorted, stolen, abused/exploited, in the polluted rivers, in the displaced and endangered animals, in the unbreathable air of the cities and borders of their industries. It is the experience of “lack” that can be felt as an emptiness, a wound, or pain, emotional or moral, and even physicaly, through illness, and it

its precisely this “lack” that signals to us that we have lost not only each other, but also a vital connection to Earth.

In this nostalgic search for the cooperative times where the divinity was feminine, round and multifaceted, and the temples were forests, fountains, stones, and caves, we perceive the reflection of the lack of the human Feminine Nature mirrored in the Anthropocene Era, which in turn is giving rise to that what Stephen J. Pyne called the Age of Fire (Pyrocene): a moment in human history marked by the already uncontrolled warlike attitude, which seeks exclusively in fire and destruction the engine for its actions, massively fueled by the extraction of fossil fuels, and by the abuse of power guided by rigid and hierarchical social systems that follow the primitive predatory logic of the dominator over the dominated, and the superior over the inferior.

Bring fire back under control, containing greed, reverse the consumerist escalation that produces indestructible waste, change the greenhouse effects and climate change, decarbonize the economy, stop deforestation and biodiversity extinctions, and protect our waters. Here are some of the purposes of our quest for Feminine Nature, as it contains a key to the way out of this environmental crisis, which in our perspective its above all a human Eco-Existential crisis of disintegration. We thus see that only an adequate integration of opposites can lead us to a turn towards the complement and transformation of the current reality. This is some of our stand points proposal for an EcoPsychotherapeutic model applied to individuals and communities.